domingo, 25 de outubro de 2009

O coração também morre


Habituamo-nos a tudo. Sem o notarmos, habituamo-nos a viver sem tempo, ao equilíbrio no arame, a esta vida na corda bamba, ao trapézio sem rede. Habituamo-nos à indiferença, ao silêncio e ao vazio. Ao cansaço. Habituamo-nos à saudade e a dar murros em ponta de faca que nos cortam o ar e nos deixam sem sangue... Habituamo-nos. E vamos perdendo vida todos os dias, vamos perdendo tempo e momentos, instantes fugazes de alegria mas que eram o respirar do corpo exausto. Habituamo-nos a viver sem água, numa sede eterna que deixa os olhos sem brilho e o coração despedaçado... Habituamo-nos a calar os gestos de amor, as palavras de desejo, a paixão. Deixamos de pedir, de lutar, de sonhar. E até a isso nos habituamos quando um dia percebemos que já nada esperamos, nenhum comboio onde embarcar, nenhum navio onde partir, nenhum horizonte no olhar... No solitário cais de embarque da vida, sentamo-nos numa apatia silenciosa, perdidos os sonhos, vencida a coragem, invisíveis aos olhos do mundo e dos homens. Habituamo-nos. Passamos a ser sombra e escuro, vazio e tristeza... e até a isso nos habituamos. Para podermos sobreviver.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Boa-noite, amor

Já me despedi de ti, como sempre faço, todas as noites. Hoje escrevi-te um longo e-mail, ao contrário do que é habitual. Apetecia-me conversar contigo, ou melhor, precisava de conversar contigo... Gosto das nossas conversas, do tempo que gastamos a saber um do outro, dos assuntos triviais e da brincadeira, das gargalhadas, da descompressão que é sempre rever-te no fim da saudade... Falei muito... como sempre. A seguir vou mandar-te uma sms... como sempre. É sempre assim, todas as noites, pelo menos todas as noites em que posso fazê-lo. A única e pequenina diferença é que não tenho carregado na tecla enviar. A única.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Amanhã talvez

Os cães estão inquietos. Agitam-se, correm loucamente até ao portão e regressam ofegantes. Choram. Talvez seja da chuva. Também não gosto deste som da água caindo nas árvores, do vento agitando a madeira, obrigando os troncos a vergarem-se. Tomei o comprimido e aguardo a calma... Queria dormir hoje, um sono sem sonhos, sem insónias, sem angústia. Estou cansada. A igreja gelada, as pessoas a chorar, o descontrole no momento em que a urna desce à terra... Odeio funerais. Lembrei-me de ti, avó, de quando te desceram à terra e me deram a chave da tua urna presa com uma fita de seda negra. Chorei muito, chorei à vontade, hoje era possível deixar cair a dor... Quando regressei sentia-me tão esfarrapada que me apeteceu ouvir uma música, vezes sem conta, até a dor passar. A única música possível. Mas a dor não passou. Entendes-me? Não passou. E agora à noite, parti um copo ao jantar. Chamaram-me desastrada, distraída, ralharam-me... e era só a merda de um copo. Como podia eu explicar que o deixei cair porque alguém, que eu não via, me agarrou a mão, a puxou com força? Como contar que me assustei, que senti medo? Fantasmas não existem, rir-se-iam de mim... Talvez eu esteja a ficar louca...
Amanhã é outro dia. Respiro fundo e espero. Amanhã será talvez melhor.