terça-feira, 28 de outubro de 2008

NÓS

O meu sonho é como um cão vadio, desses que se nos colam à porta e ali ficam, de olhos meigos e submissos, implorando guarida. Já o enxotei, já o apedrejei, mas ele volta. Quando me apanha distraída, sempre que eu baixo a guarda, ele regressa, entra-me por um vazio qualquer do olhar e enrosca-se num novelo triste à porta do coração. Deixei de o alimentar, há muito tempo que não o abrigo no calor da memória, mas de nada adianta. Ele volta. Volta sempre.
Era um sonho bonito, cheio de cor e de luz, perfumado, com os pronomes, os adjectivos, os substantivos e os verbos conjugados na primeira pessoa do plural. No meu sonho todas as frases começavam por "NÓS". Agora, com o passar do tempo e com o silêncio, o meu sonho vai ficando mais baço, as cores e a luz esbatem-se, vai perdendo o aroma e os contornos, embrulhou-se no mutismo dócil e frio de quem espera apenas a machadada final. O meu sonho agonizante vai morrendo lentamente. Quando me sentir capaz, matá-lo-ei um dia destes, dar-lhe-ei o golpe de misericórdia quando tiver já feito outras viagens no mar da vida. Por agora, faço de conta que ele não existe e deixo-o enrolado na sua própria solidão, nada pedindo, nada exigindo em troca, a não ser que o deixe ficar aqui... Por agora finjo que não o vejo, que é só um cão vadio errando nas estradas do tempo, lutando pela sobrevivência, à procura de um dono que lhe invente um ninho.

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